Em outubro do ano passado eu já havia publicado informações sobre a matança monstruosa de botos aqui no Brasil (leia no link http://v-pod-orcas.blogspot.com.br/2013/10/ministerio-publico-investiga-matanca-de.html) e novamente o assunto veio à tona, dessa vez no programa "Fantástico". Naquele momento eu também já havia me posicionado e dito que, antes de nos preocuparmos com a matança dos golfinhos no Japão, deveríamos atentar ao problema dos botos por aqui, fazendo o possível para divulgar o problema e lutar para que isso acabe. Se você ainda não viu a reportagem, leia abaixo:
O Fantástico denuncia um crime bárbaro e selvagem, que vem acontecendo contra um dos animais símbolo do Brasil: o boto rosa.
Na Amazônia, eles estão sendo mortos aos milhares. Uma matança que pode levar esse animal à extinção em poucos anos.
O menino e o boto. Leo e Cicatriz. Neste braço do Rio Negro, Leo é mais um mamífero ágil na água. O tamanho do milagre, a gente entende quando vê o Leo fora da água, se preparando, com um grupo de crianças especiais - como ele. Leo nasceu sem os braços e suas pernas são atrofiadas.
“O Leo ele quando ele andava ele caia todo tempo. Quando ele começou a fazer a bototerapia, ele começou a andar e não cair e nadar. Aprendeu a nadar muito bem, conta Cleonice Araújo de Souza, mãe do Leonardo. Tão bem que é campeão amazonense na categoria dele. Escreve com desenvoltura usando os pés.
O fisioterapeuta Igor Simões traz as crianças porque o boto dá motivação para o tratamento. “Existem pesquisas que mostram que depois de nadar com os golfinhos, você tem muito mais áreas do cérebro ativas. Então, para essas crianças especiais, isso é muito bom pra elas conseguirem desenvolver independência, conseguir desenvolver movimentos que às vezes tão congelados. Então o animal aproxima. O animal é o elo entre a gente”, explica Igor Simões Andrade, fisioterapeuta.
“Cada vez que eu venho pra cá mais, eu consigo ficar mais tempo debaixo d´água, respiração, melhora meu andar”, Leonardo Souza, 16 anos.
Leo fortalece os músculos imitando o boto, o único golfinho que mexe a coluna de lado. Assim ele consegue buscar os peixes entre os galhos da floresta alagada.
Mas o que explica a paciência deste boto, chamado de Cicatriz, que se deixa montar pelas crianças, uma a uma, enquanto uma visitante curiosa faz carinho nele?
“O Cicatriz deixou eu subir em cima dele, eu beijar ele, fazer carinho nele, deitar em cima dele, pegar carona em cima dele”, conta Leo.
Subimos o Rio Solimões até a Reserva do Mamirauá, onde um grupo de cientistas há vinte anos, faz um censo anual da população do boto rosa, que por aqui é chamado de boto vermelho.
Os botos são capturados com cuidado. Um de cada vez, são levados para o flutuante, são medidos e pesados. Os pesquisadores buscam conhecer as doenças que afetam a espécie, mapear a genética, compreender o sistema de sons que o boto emite para se localizar e encontrar os peixes.
A marcação serve para acompanhar a história de vida de cada um dos animais.
Uma fêmea já havia sido capturada e marcada em 2009. Na época ela tinha três anos. O que significa que agora já tá em idade reprodutiva. Por isso eles estavam esperando encontrá-la grávida. Mas ficaram desapontados. Ainda não.
Notícias de gravidez são muito esperadas. Porque o registro dos últimos oito anos é alarmante.
“Os animais que nós marcamos aqui da nossa população, a gente teve uma perda de quase 50% dos animais. É a metade do número de animais que a gente tem estudado aqui nessa região”, conta Vera da Silva, pesquisadora do Instituto Boto-Vermelho
Durante 15 milhões de anos, o boto esteve no topo da cadeia alimentar da Amazônia, foi o senhor absoluto dessas águas, sem nenhum predador para ameaçá-lo. Os índios sempre respeitaram o boto, e ele nunca foi caçado pelas populações ribeirinhas. Mas agora a população vem caindo dramaticamente por causa de um novo tipo de pesca introduzido aqui na região. Nessa pesca de peixe pequeno, o boto, essa maravilha da evolução, é usado como isca.
É a pesca da piracatinga, um peixe carniceiro também chamado de urubu d´água.
As imagens chocantes foram gravadas por um representante da Ampa, a Associação Amigos do Peixe Boi, na região do médio Solimões.
“Um dos nossos colaboradores ele ficou sabendo que ia ter uma atividade de pesca de piracatinga em um determinado dia. Então essa comunidade autorizou a presença do nosso colaborador”, explica Jone César Ferreira, diretor da Ampa.
A condição imposta pelos pescadores foi a de não serem identificados. À noite, o cerco. Quando o boto fica preso à rede, os pescadores lançam o arpão. O bicho de 250 quilos é forçado para o fundo. Sem poder vir à tona e respirar, morre afogado. Nessa noite eles pegam dois botos: um tucuxi e um rosa.
De manhã, estão ao lado de um cercado construído na água, chamado de gaiola, onde há uma gaiola, há pesca de piracatinga.
Os pescadores partem o boto-rosa, com a destreza de quem já fez isso muitas vezes. Um pedaço logo atrai um cardume de piracatingas.
Outros moradores da comunidade vêm assistir. Ninguém se espanta. O boto-rosa era fêmea, e estava grávida. O filhote é jogado junto aos pedaços da mãe. O pescador sabe que cometeu um crime ambiental inafiançável.
“Se a gente for pego com isso aí, é pior do que matar um ser humano. O cara vai preso. O cara responde. Porque o ser humano você mata hoje e amanhã sai. Esse aí não. Isso aí a gente mata porque não tem outra isca né, para pescar”, diz pescador.
Poderia ser usada gordura de animais como porco. Mas o boto é de graça. A piracatinga é capturada na época do defeso, quando a pesca das espécies comerciais é proibida.
“Começa a proibição, a gente começa a pescar ela”, diz pescador.
Todo pescador cadastrado tem direito a seguro defeso de um salário mínimo por mês. Usando o boto como isca, a tarefa é fácil. Atraídas pela gordura, as piracatingas ficam tão excitadas, e são tantas, que os pescadores podem pegá-las com a mão, e atirar para dentro da gaiola. Ou arrastar uma dezena de cada vez.
A carne de um boto rende até uma tonelada de piracatinga, vendida por um real o quilo aos frigoríficos.
“Eu fiquei muito chocada porque, eu não sou uma pessoa muito emotiva, mas eu trabalho com esses animais há mais de trinta anos. E você sabe que são animais dóceis, uma fêmea demora meses para gerar o filhote, cuida do seu filhote por três anos. E isso a gente tá vendo um, mas são centenas, são milhares de animais. E as fêmeas com os filhotes geralmente são as mais afetadas porque são as vivem em áreas mais protegidas, enseadas”, lamenta Vera da Silva.
O comércio da piracatinga é feito em milhares de toneladas. A quantidade certa ninguém sabe, porque boa parte é contrabandeada para a Colômbia.
Fantástico: Os frigoríficos, todos, têm consciência da origem dessa piracatinga, da forma como é pescada?
Valdécio Pittch, dono de frigorífico: Sim, da forma como é pescada. Todos os frigoríficos têm consciência.
Fantástico: Ao comprar o produto, vocês não se sentem coniventes com o que está acontecendo?
Valdécio Pittch, dono de frigorífico: Sim. Com certeza, sim. Porém de certa forma é uma contrapartida ao pescador que foi lá, que pescou, que é o meio de sobrevivência dele.
O procurador da República em Manaus, Rafael Rocha, durante dois anos reuniu provas da matança de botos e jacarés para a pesca da piracatinga.
“Não há efetivo suficiente para fiscalizar a matança de boto que acontece de forma muito difusa. Em cada igarapé, perto das comunidades ribeirinhas”, diz o procurador.
O estudo da pesquisadora Haydée Cunha da UFRJ foi determinante: “A gente conseguiu identificar o boto-vermelho no conteúdo estomacal da piracatinga, mostrando que essas piracatingas tinham sido pescadas usando o boto como isca”.
Tudo reunido, o procurador recomendou ao governo a proibição da pesca da piracatinga.
No dia 22 de maio, os ministros do Meio Ambiente e da Pesca assinaram a moratória para proibir a pesca por cinco anos, enquanto se buscam alternativas de isca.
Mas o documento ficou parado em uma gaveta do ministro da Pesca, que na última quinta-feira ainda não sabia se iria publicá-la. Segundo ele, para proteger a renda de pescadores.
Fantástico: Pode vir a não ser publicada?
Eduardo Benedito Lopes, ministro da Pesca e Aquicultura: Pode vir a não ser publicada e como disse buscando alternativas.
Já ministra do Meio Ambiente, no mesmo dia, contradisse o colega. “Ela tem que ser publicada. É um ato conjunto dos dois ministros, em uma decisão conjunta, fundamentada em pareceres técnicos das áreas dos dois ministérios”, afirma Izabella Teixeira, ministra do meio ambiente.
Na sexta, a moratória foi finalmente publicada numa edição extraordinária do Diário Oficial da União. A partir de 1º de janeiro a pesca e o comércio da piracatinga ficam proibidos no Brasil.
E a fiscalização não vai precisar do flagrante da morte do boto para punir quem se beneficia.
“Se houver fiscalização nos frigoríficos, que são os entrepostos, onde a produção é concentrada, isso confere viabilidade de fiscalização. E aí sim a matança pode ser coibida”, diz o promotor Rafael Rocha.
Por isso a entidade que gravou o flagrante dos botos sendo mortos, a Ampa, lançou uma campanha para arrecadar recursos e ajudar na fiscalização. “Melhorar a logística, melhorar a inteligência de todos esses órgãos que trabalham com fiscalização aqui no Amazonas”, diz Jone César Ferreira.
A moratória só deve começar em janeiro do ano que vem. Isso significa que mais de mil botos ainda podem ser mortos antes que essa pesca seja temporariamente proibida.
P.S.: Para assistir ao vídeo da reportagem que contém imagens fortíssimas da matança, clique neste link: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/07/pescadores-matam-boto-rosa-para-usar-de-isca-na-pesca-de-peixe.html.
Fonte: G1 de 20 de julho de 2014.